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Caminho à Redenção

Apresentação

Cortes, pinturas, trançados, rastafaris e outros penteados são alguns dos cuidados limitados às residências de africanos no interior do Ceará. A constatação quase geral de que não há profissionais e, às vezes, alguns produtos que consigam tratar adequadamente os crespos aflora ainda mais a troca e o companheirismo nesse aspecto. Ser o próprio cabeleireiro ou o de alguma pessoa com certa familiaridade é bastante comum, principalmente longe de casa.

 

Atravessando Acarape, cidade vizinha à Redenção, onde mora uma enorme comunidade de estudantes intercambistas, se vê que até a calçada pode virar barbearia. Ali, sentado em um banco de madeira, com um espelho na mão, enquanto o outro permanece em pé manuseando o pente e a tesoura, dois rapazes africanos — provavelmente da mesma nacionalidade, como costumam se organizar nas moradias — conversam e riem durante um corte.

 

Esse trecho foi retirado do meu registro de viagens às cidades de Redenção e Acarape, no interior do Ceará, entre os dias 7 a 10 de junho de 2018 e 8 a 10 de fevereiro de 2019. O material a seguir é resultado de  uma imersão jornalística sobre como os alunos africanos da Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (Unilab) vivenciam a negritude e cuidam dos cabelos no Brasil.

A chegada

A chegada

Sinuosas estradas levam ao município de Redenção, a 64 km de Fortaleza. Mas a pequena cidade, da região do Maciço de Baturité, abriga mais curvas do que as denunciadas pela geografia natural das suas serras e vias — com ladeiras que, de tão íngremes, precisam até ser escaladas em certo ponto. Orgulhosamente, também exibe correntes partidas que simbolizam a herança de um passado libertário. E em tom acolhedor, sem deixar de evocar a hospitalidade nordestina, impulsiona mãos que se apertam e braços que se entrelaçam dos mais chegados até aos mais desconhecidos.

 

Diante do pôr-do-sol quase anunciado, na altura daquelas 17h, a vistosa Escadaria de Santa Rita de Cássia serve como tela para a primeira parada do roteiro: o campus da Liberdade. O espaço, irmão de outros três campi da Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (Unilab), é abençoado pelo Monumento da Negra Nua às margens da avenida da Abolição, que dá acesso à cidade. O local reúne, entre outras coisas, os largos sorrisos de visitantes africanos que percorrem distâncias continentais e trazem consigo muita diversidade, inclusive capilar.

 

Na companhia de um bloquinho, duas canetas, uma câmera, um gravador e um punhado de questões, o passo tímido foi se desfazendo perante uma acolhida tão calorosa. Da chegada à partida, a primeira entrevista logo se multiplicaria por 20, entre são-tomenses, moçambicanas, guineenses, cabo-verdiana e angolanos. Mas, afinal, como é vivenciar tamanha africanidade, que transborda até as pontas dos cabelos, tão longe de casa?

A cidade

A cidade

É notável a historicidade que exala dos monumentos, estabelecimentos, instituições, equipamentos culturais, praças e ruas. Em cada esquina é possível esbarrar em um letreiro, um outdoor, uma placa, uma estátua ou até mesmo em um cardápio que faça menção à atitude pioneira de Redenção ao abolir a escravatura, em 1883: Supermercado Abolição - Livre Com Você!, Obelisco da Liberdade, Unidade Acadêmica dos Palmares, ruas Princesa Isabel, Castro Alves, Treze de Maio...

 

Das atrações mais famosas aos prazeres mais humildes, do Museu da Senzala Negro Liberto à cerveja buchudinha de três reais, andar a pé pela cidade faz jus à pacata vivência interiorana. Com quase 27.500 habitantes, estimados pela Prefeitura de Redenção, são corpos africanos que saltam aos meus olhos, mesmo que os estudantes estrangeiros que circulam diariamente ali correspondam a apenas 3% da população local, de acordo com informações de abril de 2019 do portal Dados Abertos da universidade.

 

Caminhando à beira da avenida, rastafaris e black powers se apresentam em diferentes tamanhos e formatos. Nas lojas, tranças diversas passam esvoaçantes através das portas de vidro. Crespos, postiços e pochinhos (penteado em que o cabelo fica preso no alto da cabeça) se multiplicam após o posto de gasolina, em direção à praça. E todos esses estilos se intensificam ainda mais junto às estampas, vestimentas, gírias, acessórios, dialetos e trejeitos peculiares de cada nacionalidade.

A universidade

No espaço de convivência da entrada, um mapa-múndi dá boas-vindas ao campus da Liberdade. Mais do que um enfeite, o enorme banner simboliza o caráter de integração internacional que nomeia a Unilab e sela o convênio com sete países estrangeiros. Cinco desses pertencem ao continente africano: Angola, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique e São Tomé e Príncipe. E, até o primeiro semestre de 2019, a instituição também contava com um aluno proveniente da Costa do Marfim, país da África Ocidental.

 

No amarelo neutro das paredes, grafites e gravuras explodem cores em uma tentativa de pertencimento mais duradouro, apesar de ainda tímido. Isso porque tal colorido já invade os corpos dos alunos que estudam ali, assim como os tons azuis e vibrantes do vestido de Marcia Joaquim da Silva, 22. A estudante de agronomia, no Brasil desde 2016, é uma dos 509 guineenses vinculados à universidade que estão no Ceará, formando assim a maior representatividade de nacionalidade estrangeira.

A universidade

 

No seu país, Marcia costumava alisar o cabelo mas, como a maioria das africanas, parou assim que veio morar em terras brasileiras. A prática se dava pela facilidade e o “medo” de sentir dor ao pentear os fios naturais. Em Redenção, o uso de apliques, tranças e turbantes — como alternativa ao alisamento — a levou à coordenação do projeto de extensão Estética Africana, do programa Vozes d’África. O grupo acadêmico transmite conhecimentos sobre trançado e turbante dentro da Unilab, assim como para crianças em escolas.

 

Sentada no pátio, Nancy da Costa, 23, a esperava. Para a moça, também guineense e estudante de agronomia, as mudanças em relação ao cabelo foram referentes à liberdade. Usando a vida inteira o cabelo como gosta, natural, ela passou a se sentir observada — e até seguida em alguns locais — depois de chegar ao Brasil. “Na Guiné-Bissau sou muito livre para andar como quiser”, pontua. Apesar dos constrangimentos, Nancy afirma que as situações nunca se tornaram uma pressão para o alisamento do crespo.

Cortes, pinturas, trançados, rastafaris e outros penteados são alguns dos cuidados limitados às residências de africanos no interior do Ceará. A constatação quase geral de que não há profissionais e, às vezes, alguns produtos que consigam tratar adequadamente os crespos aflora ainda mais a troca e o companheirismo nesse aspecto. Ser o próprio cabeleireiro ou o de alguma pessoa com certa familiaridade é bastante comum, principalmente longe de casa.

 

Atravessando Acarape, cidade vizinha à Redenção, onde mora uma enorme comunidade de estudantes intercambistas, se vê que até a calçada pode virar barbearia. Ali, sentado em um banco de madeira, com um espelho na mão, enquanto o outro permanece em pé manuseando o pente e a tesoura, dois rapazes africanos — provavelmente da mesma nacionalidade, como costumam se organizar nas moradias — conversam e riem durante um corte.

 

E é entre si, a preços mais baixos ou de graça, que vão se cuidando e enfeitando. Para a guineense Kitna Gomes Vaz Ferreira Lacerda, 27, a habilidade de trançar veio de casa. “Aprendi quando eu tinha sete anos de idade, porque a minha mãe fazia trança muito bem em mim e nas minhas irmãs”, relata. Como parte da cultura popular da Guiné-Bissau, as tranças refletem hábitos caseiros de geração para geração. Segundo Kitna, que estuda administração pública, "os salões são para penteados mais chiques, em casa é só trança".

 

Cuidados caseiros

Cuidados caseiros
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Kitna Gomes Vaz Ferreira Lacerda, Guiné-Bissau

“Aprendi quando eu tinha sete anos de idade, porque a minha mãe fazia trança muito bem em mim e nas minhas irmãs”

A guineense, que adotou uma política de não pagar ninguém por esse serviço no Brasil, também não cobra pelo seu trançado. “Faço sempre tranças na filha da minha amiga brasileira, mas nunca cobrei nenhum centavo. Eu mando só ela comprar o material.” Kitna fala que a decisão vem de se sentir “muito mal” em cobrar sem ser profissional — mesmo com duas décadas de experiência — porque, para família e amigos, isso não acontece “de jeito nenhum”. No entanto, a guineense declara que entre africanas que trançam profissionalmente, a mão de obra costuma variar de R$ 25 a R$ 30, subindo para a faixa de R$ 100 a R$ 150 para brasileiras.

 

Não muito longe dela, o seu tio e estudante de licenciatura em História, Jim Thomas, 31, também compartilha da mesma experiência domiciliar. Dividindo a casa com dois conterrâneos, o guineense cultiva sozinho o seu rastafari: torcendo, cortando e pintando as madeixas. Desde que chegou em 2013, percebeu que precisaria aplicar cor nos fios com alguma frequência — coisa que não fazia na Guiné-Bissau —, atribuindo a constante descoloração sofrida à intensidade do Sol nordestino.

Felizbela e Silvia

Quer passear comigo? Vamos percorrer as cidades de Acarape e Redenção para conversar com duas africanas maravilhosas sobre os costumes capilares de povos da Angola e São Tomé e Príncipe. A viagem será curta mas cheia de descobertas!

Felizbela e Silvia
Os estilos

Os estilos

De volta ao Liberdade, o horário do almoço faz convite a um desfile de curvaturas e estilos capilares. Cada corredor do pátio se transforma em uma passarela compartilhada por vários, indo de cabeças raspadas e cabelos na cintura às tranças lembrence da cabo-verdiana Vanusa Tavares, 23.

 

Optando sempre por trançados sem apliques sintéticos, a moça revela que já alisou os fios na época do seu ensino médio, movida pela moda e pelo gosto em experimentar. Mas, em 2015, após dois anos no Brasil, começou a fazer uma transição capilar depois de realizar um big chop, já que o alisamento dava “mais trabalho do que cabelo natural”. E Vanusa, tão rápido quanto apareceu, partiu. Talvez pelo clima agitado das provas finais do semestre, os encontros se fizeram mais curtos mas não menos amistosos.

 

À esquerda, seguindo em direção ao anfiteatro, encontro Dina João Manuel. A jovem guineense de 23 anos, ao contrário da maioria das africanas, já alisou o cabelo duas vezes no Brasil. O espaço de embelezamento é o seu favorito para penteados elaborados. Ao contrário dos discursos sobre identidade negra que encontrou ao vir para a Unilab, Dina fala que aspectos como procedimentos químicos capilares não são problematizados no seu país.

Apesar das populações predominantemente negras, a cultura do alisamento é comum em diversos países africanos. E mesmo sem se sentir bem, Fernanda Correia, 21, também recorria ao procedimento na Guiné-Bissau. No entanto, ter os cabelos lisos não é algo que significa usá-los soltos como no Brasil. A jovem estudante de enfermagem, mesmo após a química, faz uso de tranças com apliques sintéticos, assim como o turci vermelho que exibia quando a conheci. Ela estima um período de três semanas para conseguir finalizar o próprio penteado sozinha.

Fernanda Correia compra as lãs que usa no cabelo importadas por colegas. Esse intercâmbio de materiais dificulta a produção de tranças das africanas, que costumam esperar novos alunos ou viagens de visita às famílias para o reabastecimento dos estoques. Trancista desde os 16 anos, ela só cobra o serviço para desconhecidos, num valor de 2500 francos CFA (cerca de R$ 17).

 

Para o padrão cearense, onde essa mão de obra fica na média de R$ 200 na capital, o valor cobrado por Fernanda pode parecer baixo. Porém, em 2010, dados do Instituto Nacional de Estatística (INE), da Guiné Bissau, apontam que 69,3% da população vivia com menos de dois dólares por dia. A cotação da moeda guineense, na bolsa de valores, aponta que atualmente a quantia equivale a 1170 francos CFA (aproximadamente R$ 8,20).


Mas pagar por tranças parece não ser uma preocupação masculina. No caso do guineense Albertinho Mane, 27, a ajuda costuma vir da namorada, das primas e amigas. O rapaz prefere manter um visual variado, apostando em diferentes formas e estilos como crista (moicano) e dreads. Assim, visita o salão às vezes mas também corta com colegas.

 

 

Foi em 2017, quatro anos depois de chegar ao Ceará, que decidiu cultivar seu próprio cabelo. Albertinho Mane explica que na sua cultura esse hábito é visto com preconceito, sendo associado à bandidagem. Porém, na Unilab, ele observa que deixar os fios crescerem se torna uma atitude frequente entre os conterrâneos, que fazem grande uso de rastafaris.

 

Com cultivo anterior à entrada na universidade, o “rasta” de Nelo Francisco da Silva, 25, é notável. Para além do estilo, a construção da raiz —  que começou em 2010 — se deu por afeto, mas quase lhe custou a vinda ao Brasil. Isso porque em 2013, ano anterior à viagem estudantil, ele enfrentou dificuldades por causa do cabelo  ao tentar tirar o passaporte.

 

E o aprendizado de Nelo não se limitou ao conteúdo do curso de sociologia e especialização em gestão pública. O guineense precisou atravessar o oceano Atlântico para sentir na pele as diferenças culturais entre negros e brancos. O debate de raça e reafirmação enquanto pessoa negra se tornou necessário e inevitável não apenas para ele, mas para muitos.

A reafirmação

A reafirmação

“Fora da África nos sentimos mais africanos, mais pretos. Porque lá não era uma questão levada a destaque, mas aqui sim”, relata o aluno de pedagogia Mustafa Bali, 26. Ele diz que desde que chegou aqui sentiu a necessidade de uma “afirmação mais verdadeira”, deixando o cabelo crescer e usando roupas com representações culturais da Guiné-Bissau.

 

O jovem reclama que a negação do cabelo afro perpassa  diversas esferas, como a social e profissional. “Igual aqui, fomos colonizados pelos portugueses. Então a estética que foi deixada lá é que, para ser um homem bonito, (tem que ter o) cabelo curto, cortado, todo ajeitado. E quando o cabelo é grande as pessoas veem como uma coisa suja, que não presta”, afirma. Mustafa Bali também ressalta a marginalização do cabelo, acreditando ser uma associação “mais viva” do que em outras partes do mundo.

 

Quando o compatriota Juel da Silva, 32, fala sobre a aceitação ao próprio cabelo, a ancestralidade ganha destaque. “O cabelo grande representa as pessoas que no período da escravidão não tinham tempo de arrumá-los, porque eram colocados obrigatoriamente para trabalhar, então cresciam. Então, em homenagem a essas memórias, que são a nossa história e representam a nossa identidade, os cabelos significam muito para nós, para mim”, dispara.

 

 

Os rapazes falam que, como o debate é bastante presente na Unilab, até a forma de se apresentarem sofreu mudança. “Na África, alguns países não se veem como africanos, embora façam parte do mapa, porque não têm o tom de pele preto igual o da gente — são um pouco mais claros. Em Cabo Verde tem muito mestiço e algumas (alunas) vieram se descobrir africanas aqui também. Então preciso falar sempre: sou homem, preto e africano de Guiné-Bissau”, expressa Mustafa Bali.

 

E esse não reconhecimento da própria etnia, segundo Mustafa, também sofre influência midiática. “Quando se fala do africano, passando na TV ou pelos imigrantes de Cabo Verde, são todos pretos assim [aponta para si].” Ele fala que alguns países árabes, como Egito, Marrocos e Tunísia, também apresentam uma postura semelhante.

“Eu até brinco às vezes quando as pessoas falam ‘pô, ajeita o teu cabelo, está muito desarrumado’, eu falo ‘ah, esse é meu objetivo mesmo, te incomodar’. Eu sei que (meu cabelo) está lindo, mas o objetivo não era esse. É a construção da identidade, de aceitar tudo que é nosso, porque a gente foi educado para negar.”

Mustafa Bali, Guiné-Bissau

“Quando você tem a maioria ou 100% da população preta, não vai existir essa diferença de cor. Nos deparamos com isso aqui, sobre a afirmação e reafirmação da identidade, sobre preto, preconceito, racismo. São muitos os desafios que nós só descobrimos no Brasil.”

Juel da Silva, Guiné-Bissau

As dificuldades

As dificuldades

Há cerca de cinco anos, Domingas da Silva, 29, lida com uma nova cultura, novos hábitos e uma nova forma de ganhar a vida. Veio para estudar mas não encontrou — nem pode — na bolsa de R$ 500, fornecida pela universidade, subsídios suficientes para se manter sem outra fonte de renda. Entre as atividades do curso de antropologia, ela encontra tempo para trançar amigas, colegas e professoras. O ofício trouxe de casa, já que costumava trabalhar em salão de beleza na Guiné-Bissau.

 

Mesmo para conhecidas, ela cobra um preço para lacatir. O termo, passado na cultura oral por gerações, pode ser traduzido para “não deixar de graça”, sendo uma bonificação simbólica para a valorização da trancista. “De acordo com o mito dos nossos avós, quando você faz trança em uma pessoa e ela não te paga isso é cobrado depois. E eu confio, porque eles têm mais conhecimento”, explica Domingas.

 

A guineense lembra que no seu país, para colocar tranças em salão, os preços podem variar de 3000 a 12000 francos CFA (aproximadamente R$ 21 a R$ 84). Só que no Ceará, para amigas e conhecidas africanas, o trabalho que faz em casa fica na faixa dos R$ 20. A especificação se faz necessária porque, a depender das condições financeiras da cliente, Domingas se permite cobrar uma quantia maior. As professoras, por exemplo, pagam R$ 100.

 

Para a moçambicana Marília Jecane Massava, 20, as dificuldades foram com produtos também. Como não conhecia as linhas capilares brasileiras, a moça chegou a passar alguns meses usando apenas xampu para depois trançar os fios. “Nosso cabelo é durinho, aí doía. Mas depois eu conheci os produtos, como o creme de pentear, e agora estou mais adaptada”.

“Agora que estou aqui, aprendi a gostar de ficar de cabelo natural, mas é difícil para alguém que nasceu e cresceu sabendo que tem cabelos postiços (à vontade) e cremes para alisar. Quando cheguei e encontrei uma outra realidade, foi impactante. Entendo que numa sociedade onde tem brancos devemos, sim, ficar com nossos cabelos crespos, mas quando eu voltar vou continuar a alisar porque (é normal e) facilita nos penteados.”

Marília Jecane Massava, Moçambique

 

 

Desde que chegou em 2017, Marília suspendeu o hábito do alisamento. “Aqui os tratamentos e métodos não vão de acordo com os nossos cabelos, enquanto lá tem outro sistema, os produtos certos”, desabafa. Como a maioria das africanas, ela nunca foi a um salão no Brasil e evita por considerá-los inadequados.

 

À luz do dito por Domingas da Silva, a moçambicana também costuma pagar um preço simbólico de 50 meticais (cerca de R$ 3) para tranças complexas, quando está em seu país. Marília e a companheira de casa Isla Teasse Isaque Mahanjane, 20, adotam uma política de não pagar para serem trançadas no Brasil. A postura é repetida por outras africanas.


Isla diz gostar de penteados como a twista e tranças miraba. No entanto, como não encontra materiais com facilidade no Brasil, tem que economizar. "Lá eu usava (apliques sintéticos) e quando tirava, jogava fora. Mas aqui não, eu tenho que tirar e reutilizar porque não vendem em qualquer lugar.” A moçambicana também expõe a dificuldade de encontrar trancistas, já que a rotina da universidade é intensa. “Fiquei o semestre todo de cabelo solto, só agora que estou de férias é que eu consegui (colocar tranças)”, afirma.

Apropriação cultural

Apropriação cultural

Em meio a tanta diversidade sulamericana e africana, o intercâmbio cultural é uma via de mão dupla. Durante as frequentes celebrações étnicas que ocorrem na Unilab, é comum brasileiros comprarem e usarem roupas, colares e outras bijuterias estrangeiras. “Festas são muito expressivas, principalmente as danças”, ressalta Mustafa Bali.

 

Quando se fala em cabelo, as tranças também são elementos bastante requisitados, inclusive por pessoas brancas. Entretanto, na contramão dos debates sobre apropriação cultural do movimento negro brasileiro, o interesse e a utilização de elementos negróides por brancos são atitudes bem aceitas entre os intercambistas da universidade.

 

“A gente não pode olhar para a cultura como uma questão estática. Quando saímos no mundo, não vamos interagir só com nossos conterrâneos e para isso é preciso haver respeito à identidade”, argumenta Domingas da Silva. Apesar da guineense afirmar não ser muito procurada por mulheres brancas para tranças, acha que a atitude merece apoio. “Cada um faz o que gosta, então eu acho super legal.”

 

A coordenadora do Núcleo das Africanidades Cearenses (NACE) e especialista em relações etnicorraciais, Sandra Haydée Petit, entende a vontade como parte da dinâmica de um mundo globalizado. “Cada vez mais as pessoas vão intercambiando ideias, impressões e eu não acho negativo”, considera. Apenas acha errado quando o uso é feito para deboche, mas julga difícil generalizar.

“A partir do momento que a nossa estética se mostra, outras pessoas podem gostar e também querer se apropriar de alguns de seus elementos. Como isso também vem acontecendo com outras culturas, como as orientais. Não nos caracterizamos por ser somente um povo alvo de tantas coisas negativas, mas por ter uma cultura maravilhosa, pelas nossas conquistas, resistência e resiliência. Nós também somos vítimas, claro, mas não é o que nos caracteriza e temos que reivindicar. E essas reivindicações são passíveis de admiração, de interesse.”

Sandra Haydée Petit, coordenadora do NACE e especialista em relações etnicorraciais

 

 

Essa integração faz parte do conceito de roda, abraçado fortemente pelas cosmovisões africanas em geral, de acordo com a especialista. “Como é que eu convivo com essas diferenças, singularidades, mesmo com os conflitos que vão gerar? Tenho que dar um jeito porque a roda exige que eu me comunique com todos e todos se comuniquem comigo”. Ela argumenta que as críticas e ressalvas, quando em excesso, tornam mais difícil a aliança de outras etnias à luta do povo preto.

 

De toda forma, Sandra alerta que é preciso ter atenção a casos de má intenção, má fé, utilização abusiva e oportunismo. “Todas essas coisas podem existir mas não pelo fato dessa pessoa simplesmente vestir uma roupa, um turbante”, salienta.

A partida

A partida

Daquela vez o anoitecer chegou para avisar a hora de ir. O alvorecer, como os créditos finais de um filme bom, foi o cenário perfeito para dizer um último “muito obrigada, até mais” do caminho à Redenção. O bloquinho voltou riscado, a caneta mais usada, a câmera cheia, o gravador rouco e as questões com ânsia de novas respostas. À beira da estrada, subo no ônibus e vou embora, mas já com vontade de voltar.

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